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O quarto R - Flávio Paranhos

 O quarto R - Flávio Paranhos

            16/10/2010

 

            Não é mais concebível atualmente o uso de animais em ensino e pesquisa sem se levar em consideração os chamados 3 Rs. Reduzir (o número de testes e/ou de animais), Refinar (as técnicas de manejo, incluindo analgesia e anestesia) e Substituir (o “R” aqui vem do inglês “Replace”, substituir animais em nível superior da escala evolutiva por de nível inferior, ou, melhor ainda, animais por alternativas tecnológicas, sempre que possível).

 

 

            Isso não é propriamente novo, teve início a partir da metade do século passado, mas precisou amadurecer para ganhar força. Infelizmente, vem ganhando força também o oposto do uso irracional de animais, que é o não-uso irracional de animais. Como uma gangorra que pendia totalmente prum lado, a reação que a quer totalmente pro outro não faz concessões.

 

 

            Há uma idéia central que separa aqueles que admitem o uso de animais, desde que respeitados os 3 Rs (já, já eu digo qual seria o quarto) e os que não admitem seu uso de forma alguma. Para estes, a única forma ética para o uso de animais é o não-uso. Isso porque (e esta é a idéia central a que me referi), para eles, os animais não são um meio, mas um fim. É como se o imperativo categórico kantiano “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” valesse para os animais. “Humanidade”, então, deveria ser trocada por “fauna”, ou, mais ainda, “seres vivos”.

 

 

            Nem é preciso dizer que não era isso que Kant tinha em mente. Mas é preciso lembrar que se trocarmos “humanidade” por “seres vivos” morremos de fome. O boi é tão meio para nós como nós o somos para os tubarões. E crocodilos, e leões, e cobras grandes, e vermes minúsculos, e bactérias menores ainda. Não comemos cães e gatos, mas ainda assim estes são nossos meios de entretenimento, de terapia anti-solidão, etc. Por nosso turno, somos o meio de subsistência e (por que não?) de entretenimento e terapia deles também.

 

 

            Alguém dirá que, por termos sido os únicos presenteados com a racionalidade, temos o dever moral de ser diferentes. Ainda que isso custe o voltarmo-nos contra nossa própria natureza. E estará com razão. Há, contudo, limites. E estes são impostos pelo conhecimento tecnológico disponível (que ironia: o meio-ambiente devedor da tecnologia). Os defensores do não-uso de animais estão certos quando dizem que há alternativas para várias situações em ensino e pesquisa. Mas erram quando dizem que as há para todas as situações. Infelizmente isso está ainda longe de ser verdade. Enquanto assim for, precisamos dos 3 Rs. E de um quarto: Relevância. É preciso acabar com pesquisas redundantes e/ou irrelevantes. Não só com animais, mas também com bichos-homens. Das muitas coisas que a política do “publish or perrish” trouxe de ruim, esta é talvez a mais nociva. Toneladas de lixo acadêmico são produzidas no mundo, todos os anos, em nome da moeda de troca que é a “produção”. Está na hora de rever isso. Em nome dos animais. Todos eles.

 

Flavio Paranhos é médico e escritor

 

Publicado em O Popular

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