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Anjo e demônio - Augusto Paranhos Jr

Anjo e demônio -  Augusto Paranhos Jr

27/05/2014

“Anvisa vai publicar edital para discutir a exigência de receita médica para medicamentos tarja vermelha.” Esta foi a declaração feita em 2012 pelo presidente da Anvisa, Dirceu Barbano. Apontava uma obviedade nunca respeitada no Brasil: medicação tarja vermelha deve ser vendida somente com receita médica. Mas no Brasil isso só ocorre quando há exigência de retenção da receita, como nos casos dos antibióticos. A quem interessa esta falta de controle? Medicamentos tarja vermelha correspondem a quase 65% do mercado de medicamentos no Brasil. Estamos em maio de 2014 e a situação é a mesma.

Há inúmeros exemplos de quão desastrosa esta venda sem controle pode ser e há uma classe de medicamento em especial que é crudelíssima: a dos corticoides.

Corticoides são utilizados (e devem ser) em quase todas as áreas da medicina. Seu uso apropriado salva vidas, alivia dores, viabiliza cirurgias, etc. Há mil exemplos de efeitos benéficos. Seu uso indevido, no entanto, pode matar, cegar, mascarar doenças. É anjo e demônio. E é vendido em qualquer farmácia. Mais que vendido, ele é oferecido! O mesmo corticoide que lhe foi bom para um determinado sintoma, usado de forma errada, pode ser bastante maléfico. O anjo se transforma em demônio.

Exemplo claro dessa transformação de anjo em demônio é com colírios ou pomadas oculares de corticoides. Estas drogas podem ser usadas por um período definido e com o paciente devidamente assistido para uma infinidade de afecções oculares. Uma das mais comuns é a alergia ocular. A alergia ocular é mais frequente em crianças e adolescentes e se caracteriza por alternância na gravidade da manifestação dos sintomas (olho vermelho, coceira, lacrimejamento e fotofobia são os principais). Quando usamos o corticoide, todos os sintomas passam! É uma maravilha! Na cabeça de uma vaidosa adolescente ou de uma mãe que sofre com o penar do filho, por que não? Vamos à farmácia, é só uma gotinha de um colírio. É só um colírio... Pois bem, que fique bem claro: este colírio pode cegar e é uma cegueira sem retorno. É uma das principais formas de glaucoma secundário e por vezes vem acompanhado de catarata. Trata-se de doença grave e silenciosa. O paciente só começa a manifestar sintomas quando já perdeu quase toda a visão.

A Sociedade Brasileira de Glaucoma protocolou em 2011 e mais uma vez em 2013 pedido a Anvisa para que se posicione sobre o problema. A Anvisa nunca respondeu. Tivemos no final de abril deste ano o 1º Consenso da Sociedade Brasileira de Glaucoma para Glaucomas Secundários. Várias condutas foram discutidas por quase cem especialistas em glaucoma do Brasil, de forma bastante animada, acalorada. Só tivemos uma completa unanimidade: glaucoma secundário ao uso de corticoide é a principal causa evitável de cegueira por glaucoma secundário, atinge preferencialmente os mais jovens e que nunca, em hipótese alguma, corticoides podem ser vendidos sem receita médica. Não existe motivo qualquer que justifique a venda sem que seja por receita médica. Não há argumento.

Responsabilizar criminalmente quem vendeu colírio sem receita e cegou alguém é necessário mas não devolve a visão. É caso de polícia, não médico. Temos que olhar para frente.

É sinal de subdesenvolvimento ainda existir este tipo de cegueira evitável. Nos países desenvolvidos, corticoides ainda podem causar glaucoma, mas como efeito colateral de um tratamento que está sendo acompanhado por um médico. O que temos no Brasil tem nome: atraso do atraso do atraso. Todos os oftalmologistas convivem com este problema. Falar para os pais, como já tivemos que fazer inúmeras vezes, que não temos como recuperar a visão de uma criança é de partir o coração. Nós nunca precisamos falar que foram eles, pais, corresponsáveis. Eles sabem, vejo no olhar de quem vai ter que conviver com a culpa o resto da vida. Não precisa ser assim. Vamos olhar para frente e evitar que isso aconteça.

As colocações do presidente da Anvisa são, na melhor das hipóteses, utópicas. Em 2012 a ideia era “dar um tempo para o segmento se sensibilizar. Se não funcionar, a Anvisa pode tomar medidas do ponto de vista regulatório”. Não funcionou. Não acreditamos na educação somente ou mesmo na responsabilização dos que facilitam este comércio ilegal (“a venda de medicamentos tarjados sem a prescrição sujeita o estabelecimento a advertências, multas, interdição e cancelamento de licença” – lei de 1977). A exemplo dos antibióticos, todas as drogas tarja vermelha devem ser vendidas com retenção de receita. A cegueira de crianças é só um exemplo e controlar corticoides é um excelente começo.

 

Augusto Paranhos Jr. é mestre e doutor em Oftalmologia pela Escola Paulista de Medicina, professor adjunto da Escola Paulista de Medicina, post-doc em Glaucoma pela Universidade de Yale. Com: Francisco Lima, doutor em Oftalmologia pela USP, professor afiliado da UFG e presidente da Sociedade Brasileira de Glaucoma

Publicado em O Popular

 

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