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Variações de um tema rococó para violoncelo e orquestra -Flavio Paranhos

Variações de um tema rococó para violoncelo e orquestra -Flavio Paranhos

12/09/2014

CRÔNICAS & OUTRAS HISTÓRIAS Variações de um tema rococó para violoncelo e orquestra

“Como pode a um primeiro movimento absolutamente desastroso seguir-se um segundo absolutamente sublime?”

Não somos a mesma pessoa desde que nascemos. Se fôssemos variáveis estatísticas, seríamos variáveis discretas, e não contínuas. Perdemos células aos montes. Incorporamos, subtraímos e distorcemos memórias. Por isso decidi doar meu cérebro. Daniel Dennett costuma fazer a piadinha: a única parte do corpo da qual preferimos ser doadores, e não receptores, é o cérebro. Doarei meu cérebro a um maestro. Conduzirei as variações de um tema rococó para violoncelo e orquestra, de Tchaikovsky. Veremos o que acontece.

Nada. Nada aconteceu. A não ser que o primeiro violino brigou com o segundo, e eu fui desafiado por um terceiro. Alguém se levantou da plateia e me esbofeteou com sua luva. Reconheci de imediato, era minha esposa. Quer dizer, minha esposa da outra vida. Terá ela me reconhecido? O violoncelista veio em meu socorro, gritando, “Maestro, maestro!”. Mas então os violinos todos entraram.

Os sopros, ah, os sopros... Tão, como direi? Rococó. O oboé não, esse insistia num barroco anacrônico. E eu balançando os braços. Incrível como me entendem e tocam direitinho. Foi quando me lembrei que a seleção para músicos de grandes orquestras, quando realizada às cegas, colhe mais minorias. Por minorias aqui entenda-se mulheres, negros, asiáticos e, se nos Estados Unidos, hispânicos. Mas não
durou muito, pois tive de me conter quando me lembrei do cabelo e dos óculos de James Levine, conduzindo a sexta do Mahler. Ah, a sexta do Mahler... O segundo movimento... Como pode a um primeiro movimento absolutamente desastroso seguir-se um segundo absolutamente sublime?

Minha atenção foi desviada pelo segundo bofete que minha esposa de outra vida me deu, na outra face. Só que eu não tinha oferecido a outra face. E por que ela falava em francês? Quereria por certo que tocássemos Débussy. Sem chance. Preferia morrer a enfrentar um impromptus debussyano. Aceitaria o duelo. Não? Não era duelo? Ela só estava manifestando sua insatisfação por eu ter saído de casa no meio da tarde, em ceroulas? E ceroulas são rococó? Mas eu estava de smoking, não?

Não. Estava em ceroulas. E suspensório. Mas como seria possível, se eu balançava os braços e a orquestra tocava direitinho? É bem verdade que o primeiro violino já se levantava empunhando o lenço que costumava usar no ombro pra captar o suor e o instrumento não escorregar,na minha direção. E me esbofeteou. É que duas de suas cordas arrebentaram quando arriscou um Ditileux lascivo. Numa e noutra face, a despeito d’eu não ter oferecido nenhuma das duas. Cansei de brincar. Apelei. Saí sem olhar pra trás, o que se revelou um detalhe irrelevante, pois ninguém me seguiu. A não ser o oboé, que me esbofeteou aos gritos de barroco é a mãe. Sim, as duas faces.

publicado em O Popular

FLÁVIO PARANHOS flavioparanhos@uol.com.br
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