Mundo Mulher

Placebos e psicanálise Flávio Paranhos

21/01/2013

Ideias - Especial para O POPULAR 20 de janeiro de 2013 (domingo)  

Domingo, no Magazine do POPULAR, li interessante artigo do psicanalista Roberto Mello, Nós do Inconsciente. Vale a pena esticar seu assunto.

 

Mello, citando Ivan Corrêa, refere-se à afasia (distúrbio da fala) e a um texto de 1891, de Freud, em que contesta a causa “organicista” e defende a “psíquica”. Em seguida, citando matéria da Folha de São Paulo, refere-se ao efeito placebo para mostrar a força da “causalidade psíquica”. Causalidade essa temida por cientistas, notadamente médicos, cujo poder estaria inteiramente subjugado ao poder dos laboratórios (desta vez citando Adib Jatene).

 

Vejamos. Impressiona-me um profissional da saúde do ano de 2013 considerar como verdade absoluta um texto de 1891, como parece fazer Corrêa. Um filósofo, um historiador, vá lá. Mas um profissional da saúde... E por quê? Porque nesses mais de cem anos muita pesquisa foi feita pra esclarecer que há afasias de diferentes causas, entre elas “organiscistas” fartamente documentadas com testes objetivos de imagem e eletrofisiologia. Em 1891, por exemplo, não se sabia a causa de vários tipos de cegueira, e se Freud decidisse tratar muitas delas com conversa, ficaria rico, pois precisaria tratar seu paciente a vida inteira, sem nenhum sucesso, pois a causa estaria “organicistamente” na retina, ou em qualquer parte das vias ópticas. Em 1891 antes de Cristo também não se sabia a causa de afasias e cegueiras e sempre se poderia atribuí-las a... deuses malévolos. Enfim, a ciência caminha e vai desvendando mistérios.

 

Um dos caminhos utilizados pela ciência é justamente o dos placebos. Seu efeito não só não é ignorado, como seu uso é absolutamente essencial. Nenhum medicamento entra hoje no mercado sem passar por várias fases de experimentação, por meio das quais testa-se a droga nova contra um placebo e/ou a droga que já existe para a doença em foco. Associa-se sempre ao placebo, o duplo-cego, ou seja, nem o paciente sabe o que está usando, nem o pesquisador. Para se monitorar efeitos colaterais, há um centro analisador de resultados que sabe quem usa o quê, e, ao final, os códigos são revelados e os resultados, avaliados.

 

O duplo-cego é importante porque não há só a possibilidade do “efeito placebo”, mas também a do “efeito torcida”. Ora, um pesquisador “torce” para sua droga, seja por vaidade, seja por interesse financeiro. Mas não é apenas essa variável que importa, claro. Há várias outras. O tempo, por exemplo. Digamos que eu invento um analgésico. Daí testo num grupo de pacientes com dor muscular. Ao final de dez dias tomando meu medicamento, sua dor passa. Mas daí vejo que um grupo de pacientes com as mesmas características também ficam sem a dor, passados os dez dias.

 

O que me traz à psicanálise. Não sei o motivo do “pânico” dos cientistas americanos em relação a uma exposição sobre Freud, citado por Corrêa. Mas uma coisa é certa. Freud não foi um cientista, pelos padrões atuais. Quando tratou vício de morfina com cocaína, por exemplo. E não testou sua nova modalidade terapêutica (psicanálise) com efeito placebo, duplo-cego e tempo.

 

Aqui os freudianos protestarão, com razão, que não posso exigir de um médico do início do século 20 métodos científicos consolidados posteriormente. Mas o mesmo não se aplica a eles próprios, os freudianos. Por exemplo, valendo-me da analogia do analgésico novo. Como posso saber se uma pessoa com, digamos, melancolia reacional profunda se curou depois de dez anos frequentando um consultório psicanalítico, ou se foi porque se passaram dez anos e a ferida fechou com o tempo?

Ou se, em vez de um psicanalista, tivesse ido a um filósofo clínico, ou ainda, se tivesse ido a um lugar em que uma pessoa sem qualquer formação especial (um “placebo”) se dispusesse a ouvir e conversar com o melancólico? Desconheço estudo remotamente semelhante. E reconheço a dificuldade de levá-lo a cabo. Metodologicamente quase impossível. “Questão aberta, mas questão, é preciso manter a indagação aos analistas praticantes.”

 

Nesse momento, provavelmente, minha prima Tatiana e seus colegas devem estar subindo nas tamancas comigo. Os mais exaltados suspeitarão cumplicidade minha com a indústria farmacêutica. Desde já declaro que concordo com a afirmação de Jatene, de que os médicos estamos subjugados ao seu poder. Mas é muita ingenuidade imaginar que isso se deva a uma relação simples. Ela é complexa, é um círculo vicioso. A demanda do paciente por aparelhos (quanto mais pitoco e luzinha melhor), pílulas e soluções imediatas, estimulada pela característica superficialidade da imprensa, é enorme, pressiona o médico, que assim se torna presa fácil das indústrias de aparelhos e medicamentos.

 

Por último, mas não menos importante, não se trata aqui de desprezar causas psíquicas e afirmar as “organicistas”. Uma das coisas que o avanço da ciência tem mostrado é justamente que as doenças são multicausais. Psique e biologia estão em rede complexa com o social, havendo todo tipo de combinação possível, com situações em que um prepondera sobre o outro. Não se trata, portanto, de dizer que afasias, cegueiras e que tais devam ser tratadas com psicanálise. Nem que não devam. Podem – é um termo melhor. Desde que seja feito antes o diagnóstico clínico, que será complementado por exames de imagem e eletrofisiológicos, que ajudarão inclusive na localização da lesão, se houver, e sua causa (vascular, distrófica, degenerativa, etc).

 

Isso, se o fim desejado for o bem do paciente, e não o bolso ou a vaidade do médico e/ou psicanalista. Afinal, nem tudo Freud explica.



Flávio Paranhos é medico e cronista do POPULAR

Mundo Mulher
Mundo Mulher
Mundo Mulher
box_veja