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Déjà vu - Flávio R. L. Paranhos - opinião

Déjà vu - Flávio R. L. Paranhos - opinião

01/06/2014

Em setembro de 1999, portanto há 15 anos, publiquei nesse espaço um artigo intitulado Da permissividade nociva. Tratava da automedicação, com enfoque em oftalmologia, particularmente os colírios, e, destes, especialmente os que continham antibiótico e/ou corticóide na fórmula. À época, a jornalista escalada pelo POPULAR para fazer uma matéria sobre o assunto me questionou se a dificuldade em marcar consulta com médico não seria uma justificativa aceitável para o ato. Respondi que não, por dois motivos. Primeiro, e mais importante, que um erro não pode servir de justificativa para outro. Segundo, citei minha experiência pessoal: embora um ou outro paciente alegasse ter tentado marcar consulta comigo sem sucesso, a maioria o tinha feito por comodidade mesmo. Minha amostra não é científica, evidentemente, mas permitia uma pequena janela para vislumbrar o intrincado mecanismo da automedicação.

Pelo narrado acima, li o excelente artigo de autoria de meu irmão Augusto Paranhos Jr., em coautoria com Francisco Lima (sim, há um conflito de interesse óbvio para o elogio aqui, mas o leitor será magnânimo comigo), com amarga sensação de “déjà vu”. Sensação essa reforçada pela carta do leitor Arno Dahlke. Não demorou muito e lá estava ele, o mesmo argumento de quinze anos atrás. Argumento esse, diga-se para ser justo, que não é completamente inválido. Note o leitor que, fora de minha especialidade, posso passar pelas mesmas dificuldades relatadas por ele. Reconheço, portanto, a validade da premissa: “Em situações de emergência pode ser bastante difícil conseguir médico”. Mas daí a concluir “Portanto devo ser medicado por um não-médico” é um erro que faz lembrar a “falácia naturalista” (do “assim é” não se deriva o “assim deve ser”).

Consertar um erro com outro não é boa ideia não apenas pela óbvia consequência da eternização de ambos. Mas também por que coloca o paciente em risco real e mensurável. Pra ficar só na Oftalmologia, o capítulo “olho vermelho” tem um milhão de causas possíveis. Um farmacêutico, por mais preparado e bem intencionado que esteja, não tem como diferenciar uma “irritação” de uma conjuntivite (em suas inúmeras possibilidades de apresentação), esta de uma cerato-conjutivite, uma uveíte infecciosa, não infecciosa, etc, etc, etc. Não só não foi preparado pra isso, como não tem os aparelhos necessários. “Tratar” olho vermelho como se fosse (sempre) uma irritação com colírios contendo corticóide, terá como consequência a piora do quadro por mascaramento dos sinais e sintomas, catarata, glaucoma.

E há ainda a questão da responsabilidade. A frequência de glaucoma causado por uso de colírio com corticóide é grande. Quantas vezes o leitor ouviu falar de um paciente processar o farmacêutico e/ou balconista e/ou a farmácia? Eu nunca vi. E não é porque a imprensa não se interesse por isso. É porque o paciente simplesmente não o faz. Tenho uma teoria para esse fenômeno, a da corresponsabilidade. O paciente se sente culpado por ter se automedicado (ou a seu filho). E aqui vale dizer que nada tenho contra farmacêuticos. Tenho o hábito de sempre procurar sua ajuda na busca pela equivalência entre medicamentos prescritos a mim ou minha família. Ou seja, busco serviços farmacêuticos de um farmacêutico. E serviços médicos, de um médico.



Flávio R. L. Paranhos é médico doutor em Oftalmologia pela UFMG, com doutorado-sanduíche (CNPq) na Universidade Harvard. Mestre em Filosofia pela UFG.
Professor do Departamento de Medicina da PUC Goiás
Publicado em O Popular

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